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Desgraça e Fortuna: como medir a sorte das suas personagens | por Coral Daia

Olá! Eu sou a Coral Daia, autora de “Tal qual um lebréu“, conto publicado no Vale Fantástico de 2023 pela Editora Fantástica. Estou aqui hoje, no blog da editora, para contar para vocês uma das minhas formas favoritas de elaborar a escaleta de uma história. Vamos lá!

Kurt Vonnegut escreveu uma tese (rejeitada pela academia, mas que “foi muito divertida de escrever”) onde afirmava que histórias têm forma. Mas como? História não são apenas um enredo com começo, meio e fim? Sim, mas os eventos numa história podem ditar a forma como a narrativa se apresenta. Eu mesma gosto de dizer que boas histórias têm curvas sensuais capazes de fisgar a mais descrente das leitoras. “Do que diabos você está falando, Coral?” (risos) Calma, vou explicar.

A ideia, segundo Vonnegut, é de que toda história tem os seus altos e baixos, principalmente se estamos vendo a narrativa pelos olhos da protagonista. Ele montou um gráfico onde o eixo X (o horizontal) representa a linha temporal da história, que vai do começo até o final (entropia). Ortogonal a ele, vem o eixo Y (o vertical) onde temos uma escala da fortuna (ou da desgraça) que a protagonista está passando. Vonnegut explicou como o gráfico funciona numa aula disponível no YouTube (vídeo abaixo). Mas se você não sabe inglês, acompanhe o post, que vou explicar como usar essa ferramenta.

Vonnegut dizia que havia 8 formas gerais que uma história poderia assumir (alguns exemplos na imagem abaixo). Não vou entrar no mérito dessas formas, porque gostaria de focar em como eu uso o método dele. Mas vou deixar alguns links úteis no final do post para quem quiser se aprofundar no que Vonnegut dizia.

A forma das histórias, por Kurt Vonnegut. Dois eixos se cruzam ortogonalmente: no eixo X temos o começo da história rumo à entropia; no eixo Y, temos no topo a boa fortuna/boa saúde e na base a má fortuna/má saúde. Ao total, cinco curvas são representadas no gráfico: O homem no buraco, Garoto encontra garota, Cinderella, Hamlet e A metamorfose.

A forma das histórias, por Kurt Vonnegut. Dois eixos se cruzam ortogonalmente: no eixo X temos o começo da história rumo à entropia; no eixo Y, temos no topo a boa fortuna/boa saúde e na base a má fortuna/má saúde. Ao total, cinco curvas são representadas no gráfico: O homem no buraco, Garoto encontra garota, Cinderella, Hamlet e A metamorfose.

Como aplico essa ferramenta nas minhas histórias?

Depois que tenho a escaleta pronta e os capítulos divididos certinho em cenas, eu coloco as cenas no gráfico do Vonnegut e vou ajustando a ordem. Acredito que editar a ordem dos acontecimentos é importante para dosar quanta desgraça acomete as personagens. Afinal, torcemos pelas personagens enquanto lemos; se uma história é só ladeira abaixo, como sobreviver a uma leitura dessas? (”Uma vida pequena”, estou olhando para você) Da mesma forma, se uma narrativa não tem seus altos e baixos, se ela se apresenta mais como uma reta do que como uma curva sensual, que graça ela tem?

No meu último romance lançado de forma independente, “Garotas que rugem” (GQR, para simplificar), foi onde apliquei essa ferramenta do Vonnegut do começo ao fim. Já tinha feito algo parecido com isso em outras histórias minhas, mas nunca tinha usado como referência na hora de decidir a narrativa. Em GQR, a linha do tempo se parece mais ou menos assim:

Duas sequências de linha do tempo aplicando o método de Vonnegut. Cada cena é representada por uma entrada no gráfico, onde cada cor representa um ponto de vista diferente. Na linha do tempo de cima temos três pontos de vista, enquanto que na linha de baixo, temos quatro.

Duas sequências de linha do tempo aplicando o método de Vonnegut. Cada cena é representada por uma entrada no gráfico, onde cada cor representa um ponto de vista diferente.

Montando a curva de fortuna

Logo no começo de GQR, as protagonistas chegam atrasadas na escola e por isso são as últimas a formarem um grupo no trabalho de física. Duda e Rica já são amigas de longa data, mas Irma, a terceira integrante, ainda é uma incógnita. Quer dizer, Duda tem uma paixonite gigante nela, mas para Rica, Irma não cheira nem fede.

Por enquanto, tudo parece bem neutro. Vamos enumerar essa como a cena 1. Por ser neutra (nada muito bom acontece, nem nada muito ruim), a cena fica bem no meio do eixo de fortuna. Como ela também marca o início da história, ela é o marco zero da narrativa.

Gráfico simplificado baseado na técnica de Vonnegut. Apenas a cena 1 está representada.

Cena 1 é neutra, por isso ela está no centro do eixo de fortuna e bem no começo da história.

Depois da cena 1, no final do período das aulas, Duda precisa correr até o banheiro, porque sua menstruação desceu. Porém, ela acaba trombando com Lucas, o garoto mais idiota da escola. Ele zomba da cara dela dizendo que ela “veste uma fralda” e leva o que merece: Rica o empurra no chão, e elas vão embora.

Duda fica triste com o que aconteceu e também preocupada: e se Rica acabar se encrencando nessa? Definitivamente, uma situação bem ruim. Essa será a cena 2.

Gráfico simplificado baseado na técnica de Vonnegut. Além da cena 1, a cena 2 também está representada no gráfico, porém mais perto do fim (eixo x) e mais perto da desgraça (eixo Y).

A cena 2 é ruim, mas não é a pior coisa do mundo. Ela ficará depois e abaixo da cena 1, mais perto da Desgraça.

No dia seguinte, Duda vai estudar na casa da Irma. Rica diz que tem outros planos pra atender, então Duda fica mais perto da sua paixonite. Essa é a cena 3 e tudo termina bem!

Naquela mesma noite, Rica vai assistir a chuva de meteoros e manda várias mensagens pra Duda, até que para de responder de repente. Cena 4, bem neutra.

Na escola, Rica não aparece, nem mesmo à tarde na hora de comprar cartolina pro trabalho. Duda e Irma vão à sorveteria juntinhas, uhul! Cena 5, fogos de artifício!

Gráfico simplificado baseado na técnica de Vonnegut. As cenas de 1 a 5 estão representadas no gráfico numa curva oscilante, mas ascendente em direção ao fim (eixo x) e à fortuna (eixo y).

As cenas estão oscilando, mas há um crescimento da fortuna, no geral, para as personagens. Tudo parece que vai dar certo!

Depois da sorveteria, Duda está tão feliz que decide visitar Rica. Ela tem muito o que contar, afinal Irma é uma gracinha e ainda lhe deu um beijo na bochecha!

Mas a cena 6 não é feliz.

Quando Duda chega na casa da Rica, tudo está estranho. A casa parece engolida pelas sombras e a mãe da Rica, Dona Socorro, paira pelos cantos feito um fantasma. Rica não tinha ido pra aula naquele dia, pois havia sido atacada durante a chuva de meteoros. E, como se não bastante, o pai dela a maltrata por ter saído de casa sem avisar.

Gráfico simplificado baseado na técnica de Vonnegut. Cenas de 1 a 6 estão representadas no gráfico. Porém, ao contrário da curva ascendente em direção à fortuna, a cena 6 se mostra como uma queda brusca em direção à desgraça (eixo x).

A cena 6 nos faz duvidar da maré de boa fortuna que as personagens vinham presenciando. Será que vai ficar tudo bem mesmo?

Pensamentos finais

Acredito que essas oscilações na fortuna/desgraça dos personagens ajuda muito a criar um ritmo na narrativa — um ritmo diferente, calcado no engajamento emocional da leitora e não necessariamente na velocidade em que as cenas acontecem. Isso ajuda a prender a atenção na hora da leitura. O mesmo gráfico pode ser usado para medir o tom de humor das cenas (fortuna = feliz, desgraça = triste, e por aí vai). É um exercício bem divertido de fazer!

Acho que narrativas onde só acontecem desgraças acabam perdendo a mão alguma hora. É importante ter momentos de esperança também, de felicidade, de realizações positivas — para as personagens e também, principalmente, para quem estiver lendo. Os momentos ruins são aqueles onde torcemos pelas personagens, enquanto os bons são onde colhemos os frutos da satisfação junto das personagens.

Por fim, esse tipo de gráfico me ajuda a visualizar o andamento da história e a dosar o desgraçamento das personagens. Será que elas estão sofrendo demais? Vou pegar leve aqui. Hm, muita coisa boa acontecendo, acho melhor causar um pouco só para dar um choque de realidade nas personagens (e nas leitoras também). Com o gráfico, consigo visualizar essas decisões e, assim, tomar decisões narrativas ainda melhores!

Ah, e quanto às garotas do exemplo? Caso a história delas tenha te interessado, você pode descobrir o que acontece emGarotas que rugem! O livro está disponível na Amazon para compra e no Kindle Unlimited para empréstimo gratuito (versão somente em formato digital, ebook). Boa leitura e bom desenvolvimento de narrativa para você!

Referências e links úteis:

[1] The Narrative Practice. The Shapes of Stories.

[2] Kevin Flanagan. 8 Story Shapes Every Storyteller MUST Know: Kurt Vonnegut’s Guide to Mastering Narrative Arcs.

[3] Miriam Quick (BBC). As seis tramas que são a base de (quase) todas as histórias já contadas.

[4] William Mur. A forma das Histórias.


Foto de Coral Daia, uma moça branca de olhos verdes e cabelo ruivo cacheado na altura dos ombros. Ela está sorrindo olhando diretamente para a câmera. Veste uma blusa escura e aparece apenas dos ombros para cima na foto.

Sobre a autora

Coral Daia é oceanógrafa e escreve ficção especulativa. Publicou diversos contos e poesias em revistas, antologias e newsletters. Publicou a novela “Café passado e outros dotes de Valdete” (Ed. Dame Blanche, 2023) e o romance “Garotas que rugem” (independente, 2024). Também é ilustradora, capista e leitora crítica.

Você pode conferir mais do trabalho dela em seu WordPress.

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