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O lado oculto da criação | por Rai Gumerato

A Skeleton, por Charles H. Bennet

Criar é aceitar as sombras que existem dentro de você. Todo artista, mais cedo ou mais tarde, aprende que é impossível fugir do próprio inconsciente; na verdade, abraçar as partes suas que o resto do mundo nem sonha que existem é a chave que destrava sua criatividade para sempre. Veja bem: nosso lado consciente e iluminado pela razão tem um papel importante na arte, pois é ele que vai assimilar e reproduzir as técnicas e macetes necessários para a produção da obra. Mas a inspiração, a fagulha daquele “algo mais” que captura a atenção do público, costuma vir daquela região inóspita e selvagem comandada por nossos instintos e desejos mais profundos – ou seja, das nossas sombras.

Existem inúmeros relatos de artistas que criaram a partir de sonhos. O onírico é o local onde o inconsciente se manifesta de maneira plena. Quantas vezes não sonhamos coisas malucas? Quem nunca fez em sonhos algo que nem sabia que queria? Em 1713, um músico chamado Giuseppe Tartini sonhou que o Diabo lhe tocava uma sonata ao violino. Quando acordou, ele passou para o papel tudo que lembrava da música, que ficou conhecida como A Sonata de Tartini. Um dos meus futuros projetos (costumo manter rascunhos guardados por anos até que a ideia amadureça o suficiente para ser contada) começou com uma mistura entre um pesadelo e um único episódio de paralisia do sono. Outros detalhes vieram de sonhos que fui costurando até formarem uma colcha de retalhos minimamente coesa.

A Lua, 18º arcano maior do Tarô, representado aqui pelo Cosmic Tarot. Esta carta é associada ao inconsciente e à intuição.

Além dos sonhos, aquilo que escondemos também é uma fonte abundante de inspiração. Praticantes de esoterismo/ocultismo costumam fazer o shadow work, ou trabalho com as sombras, que consiste em colocar em um caderno os traumas, medos e emoções como inveja e ciúme. Esse nosso lado é parte fundamental da nossa psique, muitas vezes ditando comportamentos e escolhas sem que percebamos. Existem terapeutas que também trabalham o inconsciente dos pacientes de maneira parecida, incentivando que eles mantenham um diário por escrito ou até desenhando situações e pensamentos conflitantes. O álbum mais recente do Ghost, Skeletá, é uma viagem musical pelo lado sombrio das emoções que trazemos guardadas a sete chaves, o nosso esqueleto psicológico. Ao escrever Ode à Reconstrução, meu conto presente na antologia Vale Fantástico vol. 2023, aqui da Editora Fantástica, sem querer deixei implícita uma mágoa que carregava há 20 anos. Mesmo que o enredo seja bem diferente do que aconteceu comigo (afinal, não sou uma bruxa que entrou em contato com uma divindade nórdica), cada parágrafo traz um pouco da dor que arrastei comigo por todo aquele tempo e que, curiosamente, diminuiu assim que a história foi publicada. Apesar de não substituir o apoio de um profissional, arte muitas vezes é também terapia.

Capa da antologia Vale Fantástico vol. 2023, na qual participei com Ode à Reconstrução.

Outra coisa peculiar que acontece com artistas é a repetição inconsciente de certos detalhes em todas ou na maior parte de suas obras. Pode ser um tema, um detalhe na aparência ou no jeito de falar dos personagens, até construções de frases e parágrafos; muitos de nós refazem o mesmo caminho infinitas vezes, reforçando as raízes que esse criou em nossa psique.  Uma amiga apontou certa vez que quase todas as minhas histórias têm cenas relacionadas a comida e bebida logo no início: os personagens se encontram em um bar, acontece uma briga em uma taverna ou alguém simplesmente está passando um café.

Prestar atenção no que o lado oculto da nossa criação transmite pode se tornar uma ferramenta poderosa não apenas em nosso ofício, mas na vida em geral. Conhecer a si mesmo é uma tarefa que nunca acaba, pois a cada segundo somos refeitos pelas pessoas ao nosso redor, por nossas experiências e pelo ambiente que nos cerca. Ao encararmos nosso abismo interior, porém, acabamos por nos sentir menos perdidos em meio a tantas mudanças surgidas cada vez mais rápido no dia-a-dia.


Sobre ê autorie

Seja através de um anjo caído buscando vingança, uma Morte apaixonada pela música humana ou na magia presente no nosso próprio país, o sombrio permeia cada linha das narrativas que Rai Gumerato coloca no papel. Suas primeiras histórias foram publicadas gratuitamente na plataforma Scriv, e duas delas ganharam prêmios por lá. Participou de dois projetos da Agência Polarys: o Clube Planetário, com o conto O Ódio de Circinus; e o prefácio da antologia O que é Folclore. Com a Editora Fantástica, publicou Ode à Reconstrução no Vale Fantástico vol. 2023, uma antologia inteiramente LGBTQIA+. Musica Mortis foi seu primeiro livro solo na Amazon. No blog Escritos de Rai fala sobre seu processo criativo e as diversas mídias que o influenciam. Também integra o blog Verifique Antes de Ler (ambos estão no WordPress). Você pode encontrá-la falando abobrinha no BlueSky ou tentando ser mais séria no Instagram ao procurar por @escritosdrai.

1 Comentário

  1. Que texto bonito! Não faz muito tempo eu descobri uma das minhas obsessões de escritor também, é relacionada a um tema recorrente nas minhas histórias 😅


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