Sempre que converso sobre escrita com alguém saio completamente extasiado. É bom demais entender como a escrita funciona na cabeça de outra pessoa: o jeito que ela estrutura as histórias, organiza as ideias ou até mesmo decide marcar os diálogos (seja com aspas ou travessões). Tudo isso sempre me impressiona.
Mas existe algo que me fascina ainda mais nessas conversas: quando pergunto, quase do nada, “Por que você escreve?”. Essa pergunta sempre rende os melhores papos. Uns escrevem por refúgio, outros por amor ao ofício, há quem faça por obrigação, e também os que escrevem por hobby. Eu, particularmente, escrevo porque preciso escrever. Minha mente está sempre criando. Uma pessoa que vejo na rua vira personagem, um carro bonito que passa se transforma em espaçonave e assim por diante.
Sempre me perguntei de onde vem essa criatividade. Depois de muito refletir, percebi que ela está enraizada na minha vida desde cedo: sempre amei adaptações. Seja nos filmes do Homem-Aranha ou nas minhas brincadeiras, quando pegava todos os brinquedos para reproduzir programas de TV, como o Big Brother Brasil, ou inventar aventuras épicas com o Max Steel.
Isso se traduziu também para os livros. A primeira trilogia que devorei foi a de Assassin’s Creed, protagonizada por Ezio Auditore. Diga o que quiser, mas esses livros ocupam um lugar especial no meu coração. Como fã da franquia, adorei ver a gameplay transformada em narrativa. E esse não é o único exemplo. Os livros de Mass Effect expandem o universo do jogo ao mostrar toda a politicagem espacial e jornadas paralelas à do Comandante Shepard. Já os romances de God of War contextualizam ainda mais a sede de vingança do Fantasma de Esparta e depois sua redenção junto ao filho.
Mas como tudo isso afeta a minha escrita? É aí que entra o RPG, porque essas adaptações me mostraram como jogos podem se tornar literatura. Mas foi o RPG que me ensinou que nós, jogadores, também podemos ser autores.
Em 2015, um amigo me apresentou ao Role Playing Game. Criar meu próprio personagem dentro de um cenário, decidir ações por meio da interpretação e confiar nos dados para o sucesso (ou fracasso) foi algo transformador. Assim nasceu Pandas Pandíneas, meu primeiro personagem. Fiz graça, contei vantagem, briguei e morri porque, convenhamos, não é a melhor ideia do mundo puxar a espada para o homem misterioso da taverna.
Não foi minha primeira experiência com RPG. Antes disso, eu já tinha jogado livros-jogos, algo sobre ladrões e castelos (se minha memória não me engana). Eram divertidos, mas engessados. Na mesa, porém, tudo era mais maleável, mais vivo.
Depois da sessão de Pandas Pandíneas, não quis que a história acabasse ali. Escrevi um conto de origem para o personagem. E, não satisfeito, transformei toda a sessão em narrativa. Dei até um motivo “digno” para a ação tola que resultou na morte dele:
“Levantou a espada de cristal porque, em suas terras distantes, aquele era o gesto mais cordial de saudação. Infelizmente, o homem misterioso não interpretou da mesma forma. O golpe foi rápido, seco, e um pseudo-herói caiu ao chão.”
Você pode chamar isso de “torcer os fatos”. Eu chamo de dar ordem ao caos.
Como mestre de RPG, anos depois, repeti o processo várias vezes: transformei sessões em contos, usei aventuras para testar ideias ou até para detalhar cenários que venho desenvolvendo. O RPG é uma ferramenta poderosa para a escrita, pois me permite exercitar a imaginação e, ao mesmo tempo, aliviar a tensão.
E, claro, não sou o único. Leonel Caldela, autor da Trilogia da Tormenta, usou o RPG para testar regras e narrativas que depois se consolidaram em Tormenta 20, o maior cenário de RPG do Brasil. O contrário também acontece: R. A. Salvatore criou Drizzt Do’Urden para expandir Forgotten Realms, e o personagem se tornou tão icônico que ganhou dezenas de livros próprios.
Jogar RPG é construir uma história em conjunto. O mestre propõe ideias, os jogadores exploram, expandem, contradizem, e dali surge a narrativa. É nesse ambiente que nascem sistemas de magia complexos, relacionamentos únicos, conflitos improváveis e consequências absurdas simplesmente porque são divertidas. Quem consegue dar ordem ao caos de uma mesa de RPG tem, nas mãos, tesouros narrativos para a criação de histórias fantásticas.
Escrever sozinho pode nos levar a ser como um jardineiro ou um arquiteto (definições que eu particularmente acho tentativas estranhas de colocar escritores em caixinhas, mas isso é papo para outro momento), mas quando nos propomos a criar em grupo ninguém tem controle absoluto de nada. Você pode ter a melhor solução do mundo e os dados simplesmente não colaborarem ou você pode ter a pior atitude do mundo e, por algum motivo, os deuses do RPG piscarem para você. Tudo isso é flertar com um elemento que eu acho muito importante quando tratamos de criatividade: o caos.
Em tudo que escrevo gosto de deixar um pouco desse caos pairando no ar, seja nos meus textos mais voltados para a fantasia medieval ou os que brincam um pouco com a fantasia da mente, como, por exemplo, no texto que escrevi para a edição de 2024 do Hotel Fantástico (estou hospedado no Quarto 15, me visitem lá). Costumo deixar as ideias me dominarem antes de colocá-las no papel e, claro, não podemos ser dominados por completo, para não perder o controle da narrativa, mas acho importante deixar o caos transbordar antes de tudo.
No fim, seja qual for o motivo que te leva a escrever, se você joga RPG, seja na tela, como em The Witcher 2 (até hoje lembro do impacto de descobrir múltiplos finais… e não, eu não matei o Letho), ou na mesa, com papel, lápis e dados, você já é um criador de histórias. Criar um personagem, inventar uma cidade ou até imaginar uma simples taverna já é, no fundo, um exercício de escrita. Se eu puder te fazer uma sugestão, junte alguns amigos e deixe o caos dominar um pouco dentro de duas horas de muita diversão no RPG. Depois disso, basta dar um pouco de ordem ao caos criativo.
E voilà: temos uma história digna de ser lida nas mãos.

Sobre o autor
Vinicius Nunes de Lima é administrador, escritor e RPGista de carterinha. Gosta de histórias que tenham um pano de fundo profundo, com personagens confusos e por vezes duvidosos, mas que têm o coração no lugar certo.
Trabalhou com leitura critica por dois anos, e hoje está mais focado em escrever suas próprias histórias, no seu cenário de fantasia Ziandores. Mas não consegue abandonar os romances clichês que também adora escrever.
Você pode encontrá-lo no instagram como @shadowvini onde tenta com muito esforço manter uma vida online ativa, falando um pouco sobre as coisas que lê e as coisas que quer escrever.
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